A seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) está combatendo, na Justiça Federal, o exercício ilegal da advocacia. Desde 2022, ingressou com 34 ações civis públicas e obteve 23 decisões liminares contra estabelecimentos que ofereciam serviços advocatícios sem autorização.
Boa parte das ações ajuizadas envolve empresas e profissionais sem inscrição na OAB e que atuam, principalmente, nas áreas do direito previdenciário, do consumidor – especialmente em causas do setores aéreo e bancário – e direito do trânsito.
O mais comum é que se trate de empresas que usam a internet e as redes sociais para captar clientes, além de fazer abordagens mais diretas, como o envio de cartas a idosos com promessas de benefícios previdenciários e ganhos em processos.
Em alguns casos, as fraudes também configuram litigância predatória, estratégia que consiste na criação artificial de processos judiciais para pressionar acordos e obter ganhos indevidos para o escritório ou empresa que atua de forma ilegal.
A presidente da Comissão de Fiscalização da Atividade Profissional da OAB-SP, Rebeca de Macedo Salmazio, ressalta que as fraudes costumam acontecer na esfera administrativa, antes de chegar ao Judiciário – especialmente junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e ao Detran.
“Em última análise, quando o caso chega no Judiciário, o advogado está se aproveitando dessa prática, captando ilegalmente clientes. Quando o profissional é identificado, responde imediatamente no Tribunal de Ética da OAB”, afirma a advogada.
Em um dos processos interpostos pela OAB, uma mulher, não inscrita na OAB e com empresa constituída, a pretexto de oferecer serviços de assessoria administrativa previdenciária, estava na verdade atuando ostensivamente na captação de clientes para propor ações contra o INSS.
O caso foi julgado pela 3ª Vara Federal de Bauru (SP), que concedeu liminar para obrigá-la a suspender o envio de correspondências ofertando serviços privativos da advocacia e ordenou busca e apreensão de documentos relativos à atividade empresarial (processo nº 5000883-40.2023.4.03.6108).
“Em nosso entender, está demonstrado, em sede dessa análise sumária, que a requerida oferta atividades privativas da advocacia, sem habilitação para tanto, em violação ao Estatuto da OAB, e/ou está sendo utilizada por ou atuando indevidamente com advogado para captar causas, o que caracteriza infração disciplinar (artigo 34, IV, do Estatuto)”, diz na decisão a juíza Maria Catarina de Souza Martins Fazzio.
Outra ação também envolve captação indevida de clientela e oferecimento de assessoria jurídica, atividades privativas da advocacia. Simulando oferecer serviços administrativos, os sócios da empresa também ofereceriam a propositura de demandas judiciais.
A liminar foi concedida pelo juiz Paulo Alberto Sarno, da 5ª Vara Cível Federal de São Paulo, para obrigar a empresa a suspender a divulgação de serviços advocatícios e a execução de qualquer atividade ligada à advocacia (processo nº 5034691-26.2024.4.03.6100).
“Trata-se, pois, de sociedade que não se encontra devidamente registrada no conselho seccional da OAB, razão pela qual não pode oferecer ou exercer atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas. A meu ver, há evidente plausibilidade na alegação de que a empresa oferece e exerce, ilegalmente, atividades privativas da advocacia, conforme conjunto probatório apresentado com a peça inicial”, afirma o
magistrado na decisão.
Ivan do Amaral, especialista em Direito Empresarial e sócio do Pessoa & Pessoa Advogados, acrescenta que são comuns as práticas de oferecer resultados em processos, conduta vedada pelo Estatuto da Advocacia, de prometer vantagens para quem indicar novos clientes e de fazer promessas de indenizações irreais.
“Essas empresas muitas vezes atuam comercializando os dados ou abusando das procurações que são completamente genéricas. Elas também retêm valores obtidos judicialmente. O cliente é indenizado em R$ 15 mil, mas recebe só R$ 2 mil ou R$ 3 mil, o resto é retido pela empresa que prestou essa assessoria irregular”, diz o advogado.
“Cabe à própria OAB estimular e propor ao legislador uma reforma no Estatuto” — Bruno Borragine
Esse tipo de prática prejudica o mercado da advocacia como um todo, segundo Amaral, “porque os ilegais concorrem de forma desleal com advogados que atuam legalmente”. “Advogados têm de obedecer a uma série de diretrizes, manter caráter sóbrio e informativo em suas postagens, mas esses posts com promessas irreais acabam alcançando muito mais gente.”
Rebeca Salmazio, da OAB-SP, explica como é feita a atuação interna que culmina na interposição de uma ação. Após receber uma denúncia, a comissão instaura um processo. Os membros da comissão levantam provas, informações e documentos e abrem prazo para manifestação das partes.
Se for constatada atuação ilegal, a presidente da comissão encaminha o caso para o departamento jurídico da OAB, que faz uma nova avaliação. Se também lá o veredito for de irregularidade, o caso é enviado para a diretoria da seccional paulista, que pede aprovação em Plenário para a interposição de uma ação civil pública.
Rebeca Salmazio ressalta que o volume de ações e de liminares mostra que o problema tem consequências sérias para a advocacia. “Essa situação claramente causa impactos e prejuízos à classe dos advogados e a toda a sociedade, que acaba sendo vítima de serviços prestados por pessoas e empresas não qualificadas para o exercício da atividade jurídica”, diz.
Ivan do Amaral ressalta que o prejuízo com a atuação ilegal não é apenas financeiro, mas pode ser de repercussões jurídicas também. “Apesar de no Brasil se valorizar muito o acesso à Justiça, é preciso esclarecer que esse tipo de busca pelo Judiciário não é sem consequências. O consumidor não está apenas se colocando como futura vítima de golpe, como pode sofrer sanções do Estado, como uma condenação por
litigância de má-fé”, exemplifica.
Por outro lado, também é importante levar em consideração que o Estatuto da Advocacia é uma lei de 1994 e que precisa de atualização, afirma Bruno Borragine, sócio do Bialski Advogados. Segundo ele, atividades de consultoria comuns hoje não têm previsão específica, como assessoria para gestão de moedas digitais, contratos de influencers e mesmo pareceres jurídicos em âmbito tributário.
“Desde 1994, conforme a evolução das relações comerciais e contratuais, houve um significativo aumento das atividades de advocacia consultiva. Cabe à própria OAB estimular e propor ao legislador uma reforma no Estatuto para melhor conceituar e delimitar o que é e o que não é atividade privativa e legítima de advocacia nos dias de hoje”, defende o advogado.
Artigo publicado no Valor Econômico.