O Brasil é frequentemente descrito como um país altamente litigante. O sistema judiciário brasileiro lida com um volume muito grande de processos, e a morosidade na resolução dos litígios é uma questão bem conhecida. Reformas têm sido propostas e implementadas ao longo dos anos para tentar reduzir a litigiosidade e melhorar a eficiência do sistema.
Segundo o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o custo unitário médio de um processo é de R$ 8.270,13. Com base neste processo, o Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, constatou o custo da litigância predatória em R$10.726.592.886,54 (mais de dez bilhões e setecentos e vinte e seis milhões de reais) em 2020, ano em que houve o ingresso, na Justiça Estadual brasileira, de, no mínimo, 1.296.558 demandas não baseadas em litígios reais. Quantificação feita, considerando que aproximadamente 30% das novas demandas eram fabricadas em busca de ganhos ilícitos, considerando-se apenas os dois principais assuntos mapeados, e que quase 100% dessas ações são movidas sob as benesses da gratuidade de justiça.¹
Com dados mais recentes, o Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), aponta em estudo que a litigância predatória é responsável por uma média de 337 mil novos processos por ano só em São Paulo, e por um prejuízo anual de cerca de R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos. O levantamento leva em conta as demandas consideradas predatórias identificadas entre 2016 e 2021. Se considerado todo esse período, o prejuízo pode alcançar R$ 16,7 bilhões.²
Neste contexto, seja qual for a estratégia a ser adota para melhorar a eficiência do sistema judicial ou para reduzir a litigiosidade é importante reconhecer o impacto causado pelas lides predatórias, no volume de novas demandas, crescentes ano após ano, consecutivamente, na morosidade no julgamento dos processos em geral e na percepção social acerca da qualidade das decisões proferidas pelos magistrados.
Embora não exista um conceito pacificado, os tribunais de justiça, através de estudos profundos realizados sobre o tema, por meio de Notas Técnicas, definem estas lides como demandas predatórias, fraudulentas ou artificiais.
A Nota Técnica nº 02/2021 do Centro de Inteligência da Justiça Estadual de Pernambuco – CIJUSPE, define a Demanda Predatória:
“Cuida-se de espécie de demanda oriunda da prática de ajuizamento de ações produzidas em massa, utilizando-se de petições padronizadas, contendo teses genéricas, desprovidas, portanto, das especificidades do caso concreto, havendo alteração apenas quanto às informações pessoais da parte, de forma a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa.
A prática é favorecida pela captação de clientes lotados de algum grau de vulnerabilidade, os quais podem ou não deter conhecimento acerca do ingresso da ação, e pelo uso de fraude, falsificação ou manipulação de documentos e omissão de informações relevantes, com nítido intento de obstaculizar o exercício do direito de defesa e potencializar os pleitos indenizatórios.
As demandas predatórias são marcadas pela carga de litigiosidade em massa, por ações ajuizadas de maneira repetitiva e detentoras de uma mesma tese jurídica (artificial ou inventada), colimando ainda, no recebimento pelos respectivos patronos de importâncias indevidas ou que não serão repassadas aos titulares do direito invocado.”
A mesma Nota Técnica nº 02/2021, destacando a prática que gera enriquecimento ilícito de alguns, através do abuso de direito e a utilização do poder judiciário, indica como Demanda Fraudulenta, “aquela proposta mediante induzimento a erro do titular da ação, ou ainda, mediante o desconhecimento deste, valendo-se, por vezes, do uso de documentação fraudulenta ou de narração inverídica dos fatos.”
A Litigância Frívola, por sua vez, embora não evidencie má fé, gera sobrecarga do judiciário, acarretando lentidão de análise de demandas verdadeiramente relevantes, sendo conceituada como a demanda “cujo valor ou relevância, embora eventualmente positivos, não se mostram suficientes para justificar a movimentação do Poder Judiciário. Caracterizam-se, ainda, por ausência de tentativa de solução administrativa.”
O TJ do Rio Grande do Norte, através da Nota Técnica n° 01/2020, conceitua a Demanda Artificial, como:
“… causas fabricadas em lotes imensos de processos, geralmente trazidas por poucos escritórios de advocacia que praticam captação de clientela em massa e dizem respeito a uma tese jurídica “fabricada” com o objetivo de enriquecer ilicitamente partes e advogados, independentemente da plausibilidade daquele pedido. Para tanto, quem utiliza desse tipo de artifício, aposta na incapacidade das empresas, bancos e demais instituições financeiras de porte nacional de gerir adequadamente os processos judiciais e as contratações efetivadas pelos mais diversos meios no amplo território brasileiro, fazendo com que o ajuizamento maciço de ações em todo o país ou Estado, acabe por dificultar ou impedir a defesa consistente das teses levantadas. As causas fabricadas, tão logo obtenham uma decisão favorável em um Juízo, replicam-se em outras comarcas de forma itinerante, levando as empresas a firmarem acordos, ainda que não se tenha nenhuma plausibilidade do direito, para evitar novas condenações em valores superiores.”
As demandas em comento geram um custo ao erário público bastante expressivo. De acordo com números expedidos pelo CNJ, em 2020, mais de 12 BILHÕES foram gastos com as lides predatórias, artificiais ou fraudulentas.³
Esses custos são pagos por toda a sociedade, uma vez as lides predatórias são distribuídas geralmente no âmbito dos juizados especiais cíveis, que dispensam o pagamento de custas em primeiro grau, ou com as benesses da gratuidade de justiça. A Nota Técnica n° 05/2022 do TJPI, observa que esse “valor que foi praticamente todo absorvido pelo Estado brasileiro, pois quase 100% dessas ações é movida sob justiça gratuita. Esse tipo de litígio transforma os Juizados Especiais em um verdadeiro “cassino gratuito”, onde não se paga nada (dada a gratuidade do acesso ao sistema dos Juizados) e de onde pode se obter um ganho considerável, em razão do número elevado de pessoas que são recrutadas por meio de captadores locais de clientela para alimentar essa verdadeira indústria que abarrota o Poder Judiciário e precisa ser combatida, sob pena de perda de credibilidade de todo o sistema.”
Para além do prejuízo econômico, é inegável os prejuízos à imagem do Judiciário, que neste ambiente hostil, imposto pela proliferação das lides predatórias, passa por momentos de descredibilidade, causados pela demora na tramitação e conclusão dos processos, assim como na publicação de decisões inconsistentes ou divergentes, gerando incerteza e desconfiança sobre a previsibilidade da Justiça, levando à percepção de ineficiência do Judiciário.
O ministro do STF, Luís Roberto Barroso, sobre o tema, destacando os efeitos nocivos às partes, afirma que “o excesso de acesso à justiça gera a denegação de acesso à justiça”. De tal afirmação, entende-se que inacessibilidade à justiça, perpassa, também, pelo abuso do direito, que nas lides temerárias tratadas neste artigo, acabam retirando das partes, que buscam o judiciário, a prestação jurisdicional esperada e adequada.
Em última análise, toda a comunidade sofre com este tipo de atuação, pois “a excessividade de demandas utilizando-se de má-fé, sem filtro de viabilidade e apostando na falha do réu, ou do judiciário, gera ônus financeiro excessivo para o réu, de modo que pode implicar no fechamento de agências bancárias em cidades menores, por inviabilidade econômica, bem como maior restrição ao crédito, impactando o crescimento econômico da região.”⁴
Diante disso é que o judiciário, desde o ano de 2020, por meio da Resolução n° 349/2020 do Conselho Nacional de Justiça, estipula a criação do Centro de Inteligência, no âmbito dos tribunais de justiça em todas as unidades da federação, iniciando um trabalho de monitoramento dos perfis das demandas repetitivas, por meio dos Centros de Inteligência, particularmente ligados aos tribunais estaduais, que vêm editando notas técnicas muito relevantes, sobre o combate às lides predatórias.
A necessidade de abordar esse tema chegou ao Superior Tribunal de Justiça – STJ, com o tema 1.198 que debate o poder geral de cautela do juízo frente a casos de litigância predatória, após um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) na Justiça de Mato Grosso do Sul, que enfrentava um grande volume de processos potencialmente abusivos sobre empréstimos consignados. Com o julgamento do tema repetitivo, o STJ pretende estabelecer se, em situações semelhantes, o magistrado tem o poder de exigir que a parte autora complemente a petição inicial com documentos que comprovem minimamente suas alegações. Esses documentos incluem procuração atualizada, declaração de pobreza e residência, cópias de contrato e extratos bancários.
Aconteceu, no dia 04/10/2023, uma audiência pública sobre o assunto, convocada pelo ministro Moura Ribeiro (STJ) e contou com a participação de 35 expositores, incluindo pesquisadores independentes, representantes de instituições públicas e entidades de setores relacionados.
Neste contexto, é dever de toda a sociedade combater a proliferação de demandas predatórias, fraudulentas e artificiais, que não apenas sobrecarregam o sistema e aumentam os custos para o Estado e a sociedade, mas também ameaçam a credibilidade e eficiência da Justiça. A urgência de ações efetivas contra essas lides abusivas, como dito acima, é evidenciada não apenas pelo impacto financeiro, mas também pelo dano à percepção pública da Justiça e pelo risco de negação do acesso legítimo à justiça para aqueles que realmente precisam.
[1] Nota Técnica 01/2022 TJMG
[2] https://www.conjur.com.br/2023-out-09/sp-litigancia-predatoria-responsavel-337-mil-processos-ano/. Consulta realizada em 24/11/2023.
[3] Fonte: TJMG nota técnica 01/2022
[4] Fonte: TJPI nota técnica 06/2023.