Transformações nas relações com animais desafiam Direito de Família e Ambiental

As alterações jurisprudenciais costumam vir na esteira das transformações nas relações entre os seres — humanos e não humanos — que convivem em sociedade. No caso do direito animal, o estreitamento de laços entre as pessoas e os animais de estimação, além da própria estrutura econômica do país, dependente da exportação pecuária, joga luz sobre novos paradigmas que essa estrutura normativa pode ter, tendo em vista que o direito “vem a reboque dos fatos”.

O próprio termo “direito animal” está sob disputa, já que, para especialistas e estudiosos do tema, é necessário usá-lo como substituto de “direitos dos animais” para separar as militâncias jurídicas e sociais, respectivamente. Para além da nomenclatura, há intensa discussão sobre dois pontos que circundam o atual ordenamento jurídico: a natureza jurídica dos animais e a diferenciação — ou não — de animais domésticos e animais para fins de exploração econômica.

Em suma, além da questão constitucional, há duas vertentes do Direito tratando do tema. Em âmbito Civil, a normativa estabelece os animais como bens móveis, os quais são “suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social” (artigo 82).

Já sob o aspecto ambiental, a questão está pulverizada, já que os estados têm competência para legislar em certos pontos do tema. Sob o prisma federal,  a Lei de Crimes Ambientais é a normativa mais robusta que vigora no país, estabelecendo penas para maus tratos, ataques à fauna, pesca ilegal, caça, exportação ilegal de animais e outras infrações que envolvem animais.

“Pela visão clássica [do Direito Civil], não temos como dizer que, por exemplo, um animal tenha direito à vida. Pela lei brasileira, ele não tem direito subjetivo à vida, pois se um animal perder a vida vai afetar somente o direito de propriedade de alguém. É a defesa do indivíduo, não do animal. Se eu matar um animal, eu estou ‘matando’ a propriedade de alguém”, argumenta o advogado especializado em Direito de Família, Lucas Menezes, do escritório Pessoa & Pessoa.

Nos casos que envolvem normativa do Código Civil, como as ações que correm em varas de Família, a jurisprudência tem histórico conservador, no sentido de manter a natureza jurídica dos animais como objetos, mesmo que em questões que envolvem a guarda dos animais.

Nesses casos que chegam aos tribunais, incluindo os superiores, e que muitas vezes versam também sobre responsabilidade econômica pelo animal doméstico, há entendimentos divergentes quanto à fundamentação adotada.

Na maior parte das vezes, dizem os especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, utiliza-se argumentos análogos a de casos que envolvem filhos, mas sem reconhecer a personalidade jurídica dos animais.

Ou seja, a analogia estipula que esses animais sejam tratados, sob alguns aspectos, da mesma forma que filhos seriam tratados, mas sem perder seu status de objeto. Os julgadores, em seus votos, todavia, deixam sempre claro que a analogia somente supre uma lacuna legislativa, e que de forma alguma os animais domésticos podem ser equiparados juridicamente a filhos.

Dessa forma, não são incomuns decisões garantindo obrigação pecuniária com animal de estimação adquirido durante união estável ou guarda compartilhada nesse mesmo contexto.

Até o momento, há dois precedentes registrados no Superior Tribunal de Justiça. No REsp 1.944.228, julgado em outubro de 2022, uma mulher pedia ao ex-cônjuge ressarcimento pelos gastos com um animal de estimação que havia sido adquirido durante união estável.

As instâncias inferiores deram ganho parcial da causa à autora, mas a 3ª Turma do STJ reformou a decisão por três votos a dois. O voto vencedor, do ministro Marco Aurélio Bellizze, concluiu que não há dever do ex-companheiro de arcar com os custos, posto que o animal configura propriedade, e a autora havia assumido a condição de única dona do bicho.

Em 2018, o REsp 1.713.167 discutiu se haveria possibilidade, após divórcio, de visitação de cônjuge ao pet adquirido durante união estável. Também por três votos a dois, venceu o entendimento de que um homem poderia visitar a cachorra que ficou sob a guarda de sua ex-companheira.

À época, foi registrado o maior avanço do tema no Judiciário: o relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, afirmou que os animais de estimação não são propriedade, mas também não são sujeitos de direito. Eles configurariam um “terceiro gênero”, e o atual conceito de Família, mais amplo, deveria ser tratado pelo Judiciário.

Não houve, entretanto, avanço do tema em termos vinculantes nos últimos cinco anos. No Legislativo, tramita desde fevereiro um projeto de lei (179 de 2023) que estabelece a “família multiespécie” para fins de sanar as questões discutidas no âmbito do Direito de Família — além de dar novos contornos à personalidade jurídica do animal de estimação, cuja espécie não é delimitada no texto. Cães e gatos, no entanto, têm um capítulo a parte no projeto.

“A questão dos animais domésticos é interessante porque ela começa com discussões sobre direitos dos animais, mas, se analisar bem, a preocupação é com o indivíduo, com o dono do animal. Essa discussão vem ganhando força no Direito de Família, com a chamada família multiespécie. Porque é chamada assim? Porque há uma relação afetiva entre o humano e esse animais. Eles não são só bichos”, diz Menezes.

Interesses econômicos

Ainda que no Direito de Família haja lacunas na discussão, os debates sob a égide ambiental são mais complexos, posto que envolvem animais confinados para fins de exploração econômica. A Lei de Crimes Ambientais, que, em tese, deveria coibir más práticas nessa exploração, é tida como branda e pouco eficaz diante da influência maciça do agronegócio na economia brasileira.

A despeito de a Constituição garantir, em seu artigo 225, a proteção da fauna e da flora, incluindo a vedação de práticas que submetam os animais à crueldade, em termos empíricos não há esse controle. Além disso, o Congresso aprovou, em 2017, emenda constitucional ao artigo que estabelece:

“Não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”

“Essa é uma norma constitucional carregada de inconstitucionalidade. O que o legislador quis, na verdade, foi abrir as portas para práticas condenáveis que todos nós assistimos no nosso dia a dia, como questões ligadas a rodeios, vaquejadas, farra do boi. Essas práticas submetem os animais a um mal totalmente desnecessário”, critica o advogado especializado em Direito Ambiental Édis Milaré, do Milaré Advogados.

Na esteira dessa normativa, um projeto de lei (6.054/19) que cria um regime jurídico específico para os animais não humanos, assegurando-os possibilidade de representação em juízo quando houver violações, foi distorcido pelo Senado após ser aprovado na Câmara.

A Casa incluiu emenda estabelecendo que a lei não se aplica a animais usados na agropecuária, em pesquisas científicas e em manifestações culturais.

Para Milaré, o mudança constitucional feita pelo Congresso foi um duro golpe no Judiciário, que já havia, naquele mesmo ano de 2017, declarado inconstitucional a lei do Ceará que regulamentava a vaquejada como prática esportiva e cultural (ADI 4983). “O legislador foi muito mal nessa mudança”, diz o advogado.

A emenda constitucional aprovada durante o governo de Michel Temer (MDB) acabou, mesmo que indiretamente, afrouxando o arcabouço legal contra a crueldade animal, que já é considerado brando para especialistas, principalmente em relação às penas para quem pratica esses crimes. Ao menos duas ações diretas de inconstitucionalidade, incluindo uma ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (ADI 5.728 e ADI 5.772).

“De um modo geral, as penas atribuídas a quem comete maus-tratos animais são irrisórias. Tivemos uma modificação recente na lei, no que concerne aos crimes cometidos contra cães e gatos, mas em relação às outras espécies vítimas de maus-tratos, a pena do agressor continua sendo a de detenção de três meses a um ano, e multa — o que, na prática, acaba em transação penal e sequer gera-se condenação”, diz o analista judiciário da Justiça Federal de Santa Catarina, Rafael Speck de Souza, doutorando em Direito pela UFSC e pesquisador do Direito Animal.

A mudança restrita a cães e gatos (Lei 14.064 de 2020), que ampliou para dois a cinco anos a pena para maus-tratos, reforça a agenda do agronegócio e delimita mais uma vez a separação entre animais domésticos e explorados, à revelia do que estudiosos têm discutido sobre o assunto.

Restou ao Judiciário combater de forma pecuniária (por vias de indenização, por exemplo) os maus tratos na pecuária, área que concentra parte considerável das denúncias de organizações da sociedade civil e é politicamente sensível por conta da influência econômica. Ou então delimitar as possiblidades de exporação violenta dos animais, como no caso do transporte de animais  vivos, cuja legalidade vai ser decidida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

No caso, a ação vem na esteira de uma decisão de abril da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo que definiu que animais não humanos são sujeitos de direito, e sua proteção é um dever jurídico. O juiz Djalma Moreira Gomes acabou dando provimento a uma ação civil pública que pedia a proibição da exportação de animais vivos nos portos de todos o país. A decisão foi suspensa por liminar até apreciação do TRF-3.

O HC não é pra você

A discussão sobre a personalidade jurídica dos animais também resvala na possibilidade de representação perante os autos. Historicamente, o Judiciário brasileiro tem se posicionado de forma contrária a esse tipo de instrumento, como em casos famosos em que ativistas, ongs e instituições da sociedade civil tentaram impetrar Habeas Corpus em favor de animais que estavam presos em zoológicos.

O caso mais proeminente trata do chimpanzé Jimmy. Em 2011, a desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiram que Habeas Corpus só pode ser concedido em benefício de seres humanos, e não de animais. O desembargador José Muiños Piñeiro Filho, relator do caso, afirmou que  a concessão de HC só é válida se “alguém” (e não “algo”) sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção.

No julgamento, foi discutido se o fato de o chimpanzé ter 99,4% do DNA idêntico ao do ser humano possibilitaria ao animal se beneficiar das mesmas garantias constitucionais do ser humano, tese que não foi aceita. A ação pedia a transferência do primata do Zoológico de Niterói (RJ) para um santuário, posto que ele vivia isolado há anos em uma jaula no local.

Em outro caso de grande repercussão, registrado em 2005, a 9ª Vara Criminal de Salvador já havia negado Habeas Corpus que pedia a transferência da chimpanzé chamada Suíça, que vivia em uma jaula no zoológico de Salvador, para uma reserva ecológica localizada em Sorocaba, interior de São Paulo.

Para os advogados consultados pela reportagem, há um viés antropocêntrico nas atuais normativas sobre o tema que está desgastado, tendo em vista de que boa parte das espécies dos animais que estão no centro de discussões jurídicas são reconhecidamente sencientes (seres que têm capacidade de ter sensações e sentimentos, sejam eles bons ou ruins).

“O reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos ou como seres sencientes é importante para romper o paradigma antropocêntrico que predomina no Direito ou, como afirma Steven Wise, na obra Rattling the Case, a muralha jurídica densa e impenetrável que separou os humanos de todos os outros animais”, diz o especialista Rafael Speck de Souza.

Em 2021, um novo capítulo foi aberto: o colegiado da 7ª Câmara Cível do TJ-PR decidiu, por unanimidade, reconhecer o direito de animais de serem autores de ações judiciais em defesa de seus próprios direitos. No processo, uma ONG na cidade de Cascavel, no Paraná, acionou a Justiça em nome de dois cachorros — Skype e Rambo — vítimas de maus tratos. Os animais foram deixados sozinhos por 29 dias após os donos viajarem.

A primeira instância havia extinto o processo alegando que não humanos não podem ser parte em processo.

“Um condomínio, por exemplo, é um sujeito de direito mas não é uma pessoa, nem pessoa natural, nem pessoa jurídica. Você tem no ordenamento jurídico o nondum conceptus (instututo que versa sobre indivíduos que ainda não foram concebidos). A questão é: por quê o animal não pode ser um sujeito de direito?”, diz o advogado Lucas Menezes.

 

Matéria publicada no Conjur.

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