A Medida Provisória 927/2020, editada em 22 de março e que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública em razão da pandemia do Covid-19, caducou no dia 19 de julho, tendo em vista o término do prazo de vigência da proposição. A MP 927, com um sentido flexibilizante, regulava um conjunto de medidas excepcionais durante a pandemia, com vigência prevista até 31 de dezembro próximo, se fosse convertida em lei. A sua caducidade, contudo, criou um cenário de insegurança jurídica para trabalhadores e empresas sobre como serão regidas doravante as condições de trabalho ajustadas durante a sua vigência.
A referida medida provisória continha a previsão de prevalência do acordo individual sobre a questão coletiva, uma das questões mais polêmicas. Além disso, a MP autorizava, a critério exclusivo do empregador, a adoção do teletrabalho, a antecipação do gozo de férias e de feriados, a concessão de férias coletivas, a dispensa de realização de exames demissionais, a prorrogação da jornada para profissionais da saúde e a adoção de banco de horas.
A inesperada ausência de votação da MP 927 no prazo legal gerou a sua caducidade, com vários efeitos jurídicos próprios, previstos na Constituição, sendo o primeiro deles não ser possível a reedição da mesma norma na sessão legislativa em curso, ou seja, em 2020.
O segundo efeito é que poderá o Congresso, em até 60 dias, a partir de 19 de julho, editar um decreto legislativo para regular as relações jurídicas constituídas durante a vigência da MP, conforme previsão do artigo 62, §3º e §11, da Constituição Federal. Não havendo edição do decreto, o que é mais provável, as relações jurídicas ficarão submetidas às regras da MP durante a vigência – ou seja, de 22 de março a 19 de julho.
No mesmo sentido, a regra de direito intertemporal insculpida no artigo 6º, parágrafo primeiro, da LINDB, verbis: “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”.
Ademais, o STF, apreciando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 216/2006, cujo julgamento ocorreu em 14 de março de 2018, por maioria de votos, firmou entendimento no sentido de que os efeitos da medida provisória não convertida em lei limitam-se aos atos iniciados e concluídos durante seu período de vigência. Dito de outro modo, a Suprema Corte decidiu que, para serem validados, os atos devem ter sido praticados dentro do período de validade da MP.
Apesar de a sobredita ADPF tratar especificamente de critérios de emissão de licenças aduaneiras relativas à MP 320/2006, é possível que os Tribunais do Trabalho se valham desse entendimento para fundamentar suas decisões relativas à produção de efeitos da MP 927, em razão da sua caducidade.
Ocorre que muitos dos atos praticados durante a pandemia são de trato sucessivo e, como tal, dúvidas haverá se produzirão efeitos com base na MP 927 ou se deverão observar o regramento anterior à pandemia.
Se o decreto legislativo for editado (o que seria o mais aconselhável para evitar os problemas que advirão da ausência), poderá validar os atos praticados inclusive prospectivamente, conferindo-lhes efeito de ultratividade com base na MP 927.
Outra situação que poderá resguardar os empregadores diante desse cenário gerado pela caducidade da referida MP, nesses casos de atos de trato sucessivo, será a formulação de acordo coletivo com o sindicato profissional, a fim de prevenir conflitos.
Feito esse parêntese, cumpre mencionar o terceiro efeito, que, por sua vez, é que todos os dispositivos que haviam sido alterados pela MP 927 estarão integralmente restabelecidos desde 19 de julho.
Diante disso, a interrupção da vigência da MP em 19 de julho – antes da data prevista 31 de dezembro de 2020 – tem gerado impactos imediatos nas relações entre empresas e empregados. No que diz respeito às férias, durante a vigência da medida provisória, o empregador estava autorizado a antecipá-las, ainda que o período aquisitivo não tivesse transcorrido e desde que o informasse com antecedência de 48 horas.
A partir de 20 de julho, deverão os empregadores atentar às regras estabelecidas na CLT para a concessão de férias individuais. Em outras palavras, as férias serão válidas somente após ser completado o período aquisitivo (exceto se houver disposição contrária em convenção coletiva) e concedidas, por ato do empregador, mediante notificação prévia do empregado com antecedência de 30 dias.
O pagamento do terço constitucional de férias deverá ser efetuado no prazo do adiantamento do valor do salário, e não mais na forma disciplinada na MP 927, que autorizava o seu pagamento junto com o 13º salário, isto é, até 20 de dezembro.
Em relação às férias já concedidas durante a vigência da MP, elas deverão ser respeitadas, inclusive no que se refere ao pagamento do terço constitucional até dezembro. Assim, as férias comunicadas antes de 20/07/2020, ainda que antecipadas, usufruídas ou em curso, seguirão seu caminho, com pagamento ao final.
As comunicações feitas antes de 20 de julho são válidas, inclusive para a antecipação do período, mas, se usufruídas após a data, induzem pagamento nos dois dias que a antecedem, a menos que exista norma coletiva em contrário.
É possível cogitar se o empregador antecipou as férias de períodos aquisitivos futuros e houve a rescisão contratual antes do alcance dos respectivos períodos, a compensação do pagamento das férias cujo período aquisitivo não foi vencido pelo trabalhador, com suas verbas rescisórias, limitada ao valor equivalente a um mês de remuneração do empregado, com esteio no artigo 477, § 5º, da CLT. Isso se justifica no fato de que a antecipação das férias depende de ajuste entre empregado e empregador e no enriquecimento sem causa do trabalhador.
Por outro lado, é defensável não ser possível tal compensação do valor das férias antecipadas em face do ato de concessão ter se dado por vontade do empregador, ainda que haja a anuência do empregado, pois o empregador deve assumir os riscos da atividade econômica, com base no princípio da alteridade.
A MP 927 também autorizava a suspensão de férias ou licenças não remuneradas de profissionais da área da saúde ou daqueles que desempenham funções essenciais. Contudo, tal circunstância de interrupção do descanso ou licenças volta a ser proibida. Ou seja, com a caducidade da referida MP voltam ao procedimento normal, embora a pandemia esteja em curso. Empregadores da área de saúde, portanto, devem auditar os períodos concessivos evitando o pagamento em dobro.
Quanto às férias coletivas, o artigo 12 da MP 927 dispensa, na hipótese de sua concessão em decorrência do estado de calamidade pública, a regra constante no artigo 139, §2º, da CLT, ou seja, a comunicação prévia ao órgão local do Ministério da Economia e aos sindicatos representativos da categoria profissional. Com a caducidade da medida provisória, retorna, portanto, a obrigação de prévia comunicação com 15 dias de antecedência, e não mais 48 horas, por um período mínimo de 10 dias.
Por fim, essas e outras dúvidas decorrentes da caducidade da MP 927, se não forem dirimidas por eventual decreto legislativo, poderão gerar controvérsias nas relações de emprego, as quais, em última análise, ficarão sujeitas ao exame concreto do Poder Judiciário, a quem competirá solucioná-las.
Marcela do Carmo Vilas Boas
* Advogada e sócia do Pessoa & Pessoa Advogados Associados