Há 30 anos, a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) se incorporava ao ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Emenda Constitucional nº 3, de 17/3/1993. Esta emenda deu nova redação à alínea “a” do inciso I do artigo 102, da Constituição, inserindo, ainda, o §2º ao referido dispositivo constitucional.
Sua proposta foi elaborada a partir de estudo desenvolvido por Ives Gandra Martins e Gilmar Ferreira Mendes, como “medida despida do estigma que contamina a ação avocatória e que, inquestionavelmente, complementa o modelo brasileiro de fiscalização abstrata da constitucionalidade” [1].
Embora positivada apenas pelo poder derivado na década de 1990, a ADC não era um instituto propriamente novo ou alheio à realidade constitucional brasileira. A representação interventiva, historicamente utilizada sob as Constituições de 1934, 1946 e 1967/69, muitas vezes visava eliminar dúvidas sobre a legitimidade de uma norma [2]. Themístocles Cavalcanti defendia que a arguição de inconstitucionalidade, nesse contexto, não deveria ser arquivada pelo procurador-geral da República, mas sim submetida ao Supremo Tribunal Federal, mesmo com um parecer contrário à nulidade do ato normativo [3].
Essa visão da representação interventiva influenciou a legislação, como evidenciado na Lei nº 2.271 de 1954, posteriormente alterada pela Lei nº 4.337 de 1964. No entanto, essa prática distorcida fazia com que a questão constitucional fosse tratada não como um conflito federativo, mas como uma demanda constitucional abstrata. É que a representação interventiva, quando proposta com parecer ministerial contrário à inconstitucionalidade do ato impugnado, buscava, na verdade, obter a declaração de constitucionalidade da norma questionada. A representação exercia, desse modo, um controle de constitucionalidade abstrato das normas, com um caráter dúplice [4].
Situação similar ocorreu com a representação de inconstitucionalidade, à época instituída, no direito brasileiro, pela Emenda Constitucional nº 16, de 1965. A representação de inconstitucionalidade também possuía um caráter ambivalente, que valia para dirimir a controvérsia constitucional. O procurador-geral da República podia, por meio desse instrumento processual, postular a declaração de inconstitucionalidade da norma, bem como defender a sua constitucionalidade. Portanto, o texto normativo que inseriu a representação de inconstitucionalidade também não conseguiu “esconder o propósito inequívoco do legislador constituinte, que era o de permitir, ‘desde logo, a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas’” [5].
O caráter ambivalente da representação de inconstitucionalidade se destacou no caso da Rp nº 1.092, que envolvia a constitucionalidade do instituto da reclamação presente no Regimento Interno do antigo Tribunal Federal de Recursos. Na análise da representação, o PGR defendeu sua improcedência no mérito. A Rp foi julgada procedente e declarou a inconstitucionalidade da norma, motivando a apresentação de embargos infringentes pelo procurador-geral da República. A admissão desses embargos pelo STF ressaltou a natureza dúplice da representação de inconstitucionalidade. Em caso de julgamento procedente do pedido, o procurador-geral, como titular da ação, careceria do necessário interesse recursal para contradizer a decisão judicial, evidenciando a peculiaridade e complexidade desse instrumento no sistema jurídico brasileiro [6].
Apesar disso, no julgamento da Rp n. 1349, cuja relatoria coube ao ministro Aldir Passarinho, a Suprema Corte proferiu decisão deveras incoerente com o entendimento firmado na Rp nº 1.092. O PGR, cargo à época exercido pelo ex-ministro Sepúlveda Pertence, havia encaminhado ao STF petição formulada por um grupo de parlamentares, suscitando a inconstitucionalidade de determinadas disposições da Lei nº 7.232, de 29/10/1984 (Lei de Informática), manifestando o seu posicionamento contrário à pretensão dos congressistas. O Supremo, no entanto, embora admitisse que o procurador-geral opinasse, no mérito, pela improcedência da representação, considerou inepta a petição inicial, na medida em que, segundo o entendimento então firmado, não poderia o titular da ação demonstrar, de forma clara e inequívoca, que o seu objetivo era obter a declaração de constitucionalidade [7].
A decisão é curiosa. Como bem pontuou o próprio Sepúvelda Pertence, quando já possuía assento na Corte Constitucional, “um formalismo um tanto quanto cerimonial, que, entretanto, não desconhece o que me parece o fundamento relevante: o caráter dúplice da ação direta de inconstitucionalidade” [8].
De todo modo, o STF continuou admitindo a apresentação de representação por meio da qual o procurador-geral da República “limitava-se a ressaltar a relevância da questão constitucional, pronunciando-se, afinal, pela sua improcedência“ [9]. Essa via, no entanto, apenas poderia ser utilizada pelo PGR, e não pelos outros sujeitos indicados no art. 103 da Constituição Federal, o que evidenciaria a utilidade da ADC [10].
Sua introdução representou um avanço significativo, na medida em que eliminou a ambiguidade presente na representação interventiva e na representação de inconstitucionalidade, consolidando-se como um instrumento processual destinado a eliminar controvérsias decorrentes de interpretações judiciais sobre questões constitucionais [11].
Assim, enquanto a representação interventiva e a representação de inconstitucionalidade possuíam aspectos ambivalentes, a ADC surgiu como um instituto mais claro e eficiente para lidar com a constitucionalidade das normas, complementando o modelo brasileiro de fiscalização abstrata da constitucionalidade.
[1] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 280.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO: comentários à Lei nº 9.868/99. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 441.
[3] CAVALVACANTI, Themístocles. Apud MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO: comentários à Lei n. 9.868/99. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 444.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO: comentários à Lei nº 9.868/99. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 445-446.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO: comentários à Lei nº 9.868/99. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 444.
[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO: comentários à Lei nº 9.868/99. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 453.
[7] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO: comentários à Lei nº 9.868/99. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 453.
[8] Voto proferido na questão de ordem suscitada na ADC nº 01-DF.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO: comentários à Lei nº 9.868/99. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012,p. 456.
[10] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 292.
[11] CUNHA JR., Dirley da. Controle de Constitucionalidade: teoria e prática. 4 ed. Salvador: Editora JusPodVm, 2014, p. 271.
Artigo Publicado no ConJur.