Pandemia, Despedida por Força Maior e Negativa de Saque do FGTS

Como forma de mitigar os efeitos deletérios da crise provocada pelo Coronavírus na Economia, uma das primeiras Medida Provisórias editadas pelo Governo foi a de número 927, de 22 de março de 2020. Ela dispõe sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e enfrentamento do estado de calamidade e emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (Covid-19). A MP instituiu um regime de excepcionalidade condizente com o estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo no 6 de 2020,  e estatuiu que essa situação de crise tipifica, para fins trabalhistas, força maior, nos termos do disposto no artigo 501 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). 

 

Apesar do cardápio de medidas oferecidas pela MP 927 e, mais recentemente, pela MP 936, tais como a adoção do regime de teletrabalho, férias individuais ou coletivas, redução proporcional da jornada e do salário ou suspensão do contrato, o estado de calamidade e a onda de crise aguda, que atingiu vários setores da economia, provocaram um colapso de algumas empresas, o que, infelizmente, acarretou o desligamento de todos ou parte dos seus funcionários, sob a alegação de força maior.

 

A mídia tem veiculado a notícia de que a Caixa Econômica Federal (CEF) vem se recusando a permitir os saques do fundo de garantia nessas circunstâncias, pois seria necessária a apresentação da “certidão ou cópia de sentença transitada em julgado expedida pela Justiça do Trabalho”, estabelecendo força maior, conforme Manual da Caixa divulgado na internet e Circular Caixa 620/2013. Tal recusa impacta ainda na fruição pelo ex-empregado do seguro desemprego.

 

Tudo supõe que a recusa da CEF está lastreada no artigo 18, parágrafo segundo, da Lei 8.036, que passou a reger o Fundo desde 1990. Esse dispositivo estabelece que, se ocorrer a rescisão do contrato de trabalho, por inciativa do empregador, por culpa recíproca ou força maior, reconhecida pela Justiça do Trabalho, o empregador deverá depositar na conta vinculada do FGTS, a importância igual a 20% (vinte por cento) do montante de todos os depósitos realizados nessa conta durante a vigência do contrato de trabalho. 

 

Na hipótese de força maior, portanto, o empregador, ao invés de depositar o percentual de 40% (quarenta por cento) sobre o total dos depósitos do FGTS do trabalhador, poderia depositar apenas a metade, disposição essa em consonância com o previsto no artigo 502, II da CLT. É importante destacar que o caput do artigo 502 da CLT prevê essa redução da indenização para os casos em que a força maior determine a extinção da empresa (leia-se da atividade econômica) ou de um dos estabelecimentos. 

 

O artigo 501 da CLT define a força maior como “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”. A atual pandemia enquadra-se perfeitamente nessa definição, o que, aliás, foi reconhecido textualmente pela MP 927/20 (art. 1o, parágrafo único).

 

Ao lado disso, o artigo 504, inserido no capítulo da CLT que regula a matéria, assegura, uma vez comprovada a falsa alegação do motivo de força maior pelo empregador, “a reintegração dos empregados estáveis, e aos não-estáveis o complemento da indenização já percebida.”

 

Ora, sendo o saque da conta do FGTS autorizado, por lei, nas hipóteses de despedida sem justa causa e de força maior (art. 20, I, da Lei 8.036/90), a CEF não pode impedir que o trabalhador, que já se encontra em situação de extrema vulnerabilidade, efetue regularmente o saque do seu fundo de garantia, a pretexto de que, para a segunda hipótese, depende de seu reconhecimento por sentença judicial, à luz do citado art. 18, § 2o, da Lei 8.036/90. 

 

Esse preceito foi concebido pelo legislador com a nítida intenção de proteger o empregado contra eventual ardil do empregador, que poderia invocar, dolosamente, esse evento apenas para se beneficiar da redução da multa rescisória. Ou quiçá porque, na prática, diferentemente do atual cenário de pandemia, não seja tão fácil para o empregador diagnosticar com exatidão a força maior, pois, como se sabe, não pode ser associada a simples intempéries da economia ou de retração econômica provocada, por exemplo, por fatores macroeconômicos, o que se insere na alea de risco do negócio. 

 

Isso explicaria por que o parágrafo segundo do artigo 18, dirigido ao empregador, exige que a força maior seja “reconhecida pela Justiça do Trabalho”, a fim de se coibir ou inibir a utilização abusiva dessa figura legal, em detrimento do empregado. Mas isso não legitima a atitude censurável da CEF de impedir o trabalhador de sacar o seu FGTS, máxime em momento de dificuldade financeira gerada pela despedida involuntária, quando esse recurso serve justamente para compensar ou atenuar essa grave adversidade. 

 

Nem se alegue que a Caixa Econômica estaria agindo em prol do empregado ou imbuída do propósito de evitar saques indevidos, preservando, assim, a finalidade social e coletiva dos recursos do fundo de garantia, pois destinados ao financiamento de obras públicas relevantes (saneamento básico e habitação, por exemplo). É certo que, caso se comprove, no futuro, que não ocorreu a força maior, a despedida passa a ser considerada imotivada, o que também enseja o saque pelo trabalhador, de modo que não haveria, mesmo nessa hipótese, nenhuma desconformidade legal. Não se pode esquecer, por fim, que o próprio empregado pode questionar, em juízo, se assim desejar, a caracterização da força maior e obter a complementação do valor da multa que recebeu pela metade, nos termos do artigo 504 da CLT. 

 

Em casos tais, recomenda-se que o empregado aponha ressalva expressa e específica com relação ao montante referente à multa do FGTS que consta do termo de rescisão, para evitar qualquer discussão em torno da plena quitação dessa parcela,  ante o disposto no art. 477, § 2o, da CLT e no art. 18 da Lei 8.036/90, cujo parágrafo terceiro dispõe que o valor do FGTS e das multas dele constantes eximem o empregador tão somente quanto às quantias ali descriminadas. 

 

Não é crível nem razoável admitir que o trabalhador seja privado de receber o montante que possui na sua conta vinculada só porque o empregador capitulou erroneamente a despedida na hipótese de força maior, quando sua empresa ou atividade, em tese, não fora, a bem da verdade, extinta por esse motivo. Mesmo nessa hipotética situação, não compete à CEF exigir o prévio reconhecimento judicial, por sentença transitada em julgado, da força maior, como vem procedendo, sobretudo porque eventual controvérsia (ou dúvida) em torno dela compreende apenas a multa rescisória. Logo, não pode prejudicar a liberação da parcela incontroversa do fundo de garantia a que tem direito o trabalhador. 

 

A se admitir essa recusa, estar-se-á obrigando o empregado, nesse momento de pandemia, a ajuizar uma reclamação para que o juízo trabalhista simplesmente declare se ocorreu, de fato, a força maior invocada pelo empregador, o que, como se sabe, pode demorar anos, em razão da tramitação natural de um processo no âmbito da Justiça do Trabalho, já assoberbada. 

 

Haveria, portanto, um estímulo à judicialização nesses casos, o que não é salutar nem desejável no atual cenário, que dificulta o acesso do empregado à Justiça. Se o trabalhador, repita-se, se julgar lesado pelo empregador mal intencionado, nada obsta que mova a reclamação no prazo legal e no momento mais oportuno para haver a complementação da multa a que faz jus. 

 

Esse imbróglio jurídico e as possíveis demandas judiciais que dele podem advir poderiam ser evitados com a edição de uma Instrução Normativa do Ministério da Economia (que hoje abarca o do Trabalho) para disciplinar a liberação do funda de garantia pela CEF nessas hipóteses ou, ainda, por eventual medida judicial proposta pelo MPT (ação civil pública) ou ente com legitimidade para ação coletiva em defesa desses interesses.

 

Bianca Medalha Mollicone, Advogada, Economista, Mestre em Administração de Empresas pela UFBA, Professora da Faculdade Baiana de Direito

Roberto Dórea Pessoa, Advogado, Mestre em Processo Civil pela PUC-SP, Professor da Faculdade Baiana de Direit

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