O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) entendeu que não basta o consumidor adquirir um produto impróprio para consumo para ter direito a indenização por danos morais. Deve provar que ele foi ingerido. A decisão, unânime, foi dada em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e deve ser seguida por todos os magistrados do Estado.
O entendimento diverge de precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para os ministros, basta a aquisição do produto. Porém, como não há nenhuma decisão vinculante, em recurso repetitivo, o TJRJ decidiu julgar a questão em IRDR.
Foi fixada a seguinte tese: “A mera aquisição de produto impróprio para o consumo, por si só, sem a ingestão do seu conteúdo, não configura o dano moral in re ipsa” (ou seja, presumido).
O TJRJ já tinha uma súmula sobre o assunto, de nº 383, editada em 2017. Porém, segundo o relator do IRDR, desembargador Werson Franco Pereira Rêgo, não estava sendo seguida e, por isso, ele sugeriu a resolução da controvérsia por meio do incidente. O texto da súmula afirma que “a aquisição de gênero alimentício impróprio para consumo não importa, por si só, dano moral”.
No cerne do julgamento está o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que prevê, nos artigos 12, 14, 18 e 20, a responsabilidade civil do fornecedor pelos fatos ou vícios dos produtos ou serviços comercializados.
O caso analisado é de um consumidor que ajuizou ação contra a M. Dias Branco depois de comprar um pacote de bolachas supostamente contaminado por insetos. Ele não chegou a ingerir o alimento. O produto foi enviado para perícia três meses depois de ter sido aberto, e o resultado da análise foi inconclusivo a respeito do momento em que a contaminação teria ocorrido.
Diante dessas circunstâncias, a Seção de Direito Privado do TJRJ, no julgamento do IRDR, manteve sentença que negou indenização por danos morais. Para a fixação da tese, o desembargador Werson Franco Pereira Rêgo destacou que seria necessário levar em consideração diversos fatores para atribuição da responsabilidade pela desconformidade do produto. Por isso, não seria possível presumir o dano moral em todos os casos.
“A relevância da produção da prova técnica é inquestionável, em razão das peculiaridades de cada caso concreto, sendo importante a comprovação da existência do vício de qualidade, a sua origem e a sua extensão; a fase do processo produtivo e o responsável direto e imediato pela sua constituição; a potencialidade ofensiva do vício de qualidade à saúde do consumidor; a ocorrência de dano ao consumidor”, afirma em seu voto.
A decisão diverge de precedente da 2ª Seção do STJ, que considerou que o dano moral não precisa ser comprovado em casos de presença de corpo estranho em alimento (REsp 1899304). A relatora, ministra Nancy Andrighi, afirma, em seu voto, que “a distinção entre as hipóteses de ingestão ou não do alimento insalubre pelo consumidor, bem como da deglutição do próprio corpo estranho, para além da hipótese de efetivo comprometimento de sua saúde, é de inegável relevância no momento da quantificação da indenização, não surtindo efeitos, todavia, no que tange à caracterização, a priori, do dano moral”.
O próprio relator do IRDR no TJRJ destaca, no voto, que o precedente da 2ª Seção vem sendo aplicado de forma reiterada pelo STJ. Ele cita um julgado da 4ª Turma, relatado pelo ministro Marco Buzzi, que envolvia compra de cachorro-quente com o pão mofado (AREsp 2273511).
Segundo advogados, o entendimento do TJRJ foi mais ponderado, mas a divergência com o STJ pode estimular a litigância. Para Daniel Blanck, do Baldini Blanck Advogados, como o precedente do tribunal superior não é vinculante, apesar de ter sido decidido pela 2ª Seção, vai estimular a apresentação de recursos aos ministros.
“A partir do momento em que o entendimento for sumulado, vai obrigar todos os tribunais. Até lá, a falta de uniformização nacional vai levar os casos ao STJ, que deve reformar as decisões”, diz o advogado.
O caso julgado pelo TJRJ faz uma diferenciação em relação ao precedente do STJ, conforme explica Leonardo Peres Leite, sócio do MV Costa Advogados. O STJ aborda alimento com corpos estranhos, o que é um ponto mais específico do que caso de alimento impróprio para consumo, analisado pelo tribunal fluminense.
Diante da diferença de circunstâncias, afirma, o entendimento do TJRJ foi mais ponderado. “O leque de possibilidades analisado é gigantesco, porque o produto pode estar vencido, mal acomodado ou mal armazenado, ter um corpo estranho, pode ter uma série de situações, e não é possível delimitar o que vai acontecer em todos os casos. O que o TJRJ decidiu é que o produto impróprio vai ter que ser analisado por um técnico. É uma direção.”
Para o advogado da M. Dias Branco, Gustavo Vieira, do Pessoa e Pessoa Advogados, a decisão traz segurança jurídica para as empresas do setor e “resguarda o princípio da razoabilidade, evitando que consumidores possam pleitear indenizações sem que haja a efetiva comprovação de dano causado pelo defeito do produto”.
De acordo com ele, a decisão é também um passo importante para prevenir abusos e mitigar demandas excessivas, orientando que pedidos de indenização sem comprovação de prejuízo concreto possam ser evitados. “Esse precedente não apenas auxilia no equilíbrio de demandas judiciais, mas também fortalece o direito de defesa das empresas”, afirma.
A defesa do consumidor foi procurada pelo Valor, mas não deu retorno até o fechamento da edição.
Artigo publicado no Valor Econômico.