Em um mundo onde nossa presença digital se tornou uma extensão quase palpável de nossas vidas, a questão da herança digital surge como um tema crucial, mas frequentemente negligenciado. Nos corredores virtuais onde nossas memórias, interações e transações residem, surge uma pergunta importante: o que acontece com este acervo digital quando não estamos mais aqui para gerenciá-lo?
A herança digital compreende todos os ativos digitais que uma pessoa acumula ao longo da vida. Isso inclui fotos, vídeos, documentos armazenados em nuvens, e-mails, contas de redes sociais e até ativos em criptomoedas. Ao contrário dos bens físicos, cuja transferência após a morte é um processo bem estabelecido pela legislação, a gestão dos ativos digitais pós-morte permanece uma área cinzenta, tanto do ponto de vista legal quanto prático.
No Brasil, a ausência de legislação específica que regule a herança digital acrescenta uma camada adicional de complexidade. Sem um quadro legal claro, os herdeiros podem encontrar obstáculos significativos ao tentar acessar ou gerenciar os ativos digitais de entes queridos falecidos.
Em 2022, um caso interessante foi parar nos tribunais. Um pai conseguiu na Justiça o direito de acessar o celular do filho, que morreu atropelado em Santos. A Apple, empresa fabricante do celular, sustentava a impossibilidade de acessar o aparelho celular por não possuir as senhas dos dispositivos dos seus usuários. No entanto, a empresa informou que seria possível transferir os dados salvos nos seus servidores, caso houvesse autorização judicial. O juiz, então, entendendo o valor sentimental dos arquivos pessoais do falecido para os seus pais, que são seus herdeiros necessários, determinou que a Apple transferisse os dados para uma conta do genitor do falecido.
Invasão de intimidade
A questão, no entanto, não se limita apenas ao acesso e não é tão simples. Há questões relacionadas ao gerenciamento adequado de suas propriedades digitais e à proteção da privacidade e da intimidade do falecido que não podem ser ignoradas. Permitir o acesso dos herdeiros a e-mails, fotos, mensagens etc. do falecido pode configurar uma indevida invasão da sua intimidade, na medida em que poderá publicizar fatos que ele não desejava que fossem do conhecimento dos seus herdeiros.
A questão fica mais complexa quando diante da possibilidade de a vida digital do falecido pode conter informações sensíveis de terceiros. Imagina a situação em que o falecido possuía em seu celular fotos íntimas de um terceiro? Os herdeiros terão direito de acessar esses arquivos?
Essa situação é diferente quando o conteúdo do falecido nas plataformas digitais possui valor monetário significativo. É o caso, por exemplo, de influencers e de artistas. Um caso famoso foi o da cantora Marília Mendonça cujo perfil no Instagram ao tempo da sua morte possuía mais de 40 milhões de seguidores e sua conta no YouTube possuía milhões de visualizações, o que, obviamente, gerava e gera elevados recursos financeiros. Nesses casos, em que as redes sociais eram utilizadas para fins comerciais pelo próprio falecido parece não ter dúvida que se trata ativo que pode e deve integrar a herança.
Planejamento
Diante desses desafios, é imperativo que indivíduos tomem a iniciativa de planejar sua herança digital. Isso inclui documentar de maneira segura as informações de acesso a ativos digitais importantes e comunicar suas vontades a familiares ou a um executor testamentário. A consulta com especialistas em direito digital e sucessões também pode fornecer orientações valiosas e garantir que as últimas vontades sejam respeitadas.
O planejamento da herança digital é, portanto, um ato de previsão e preparação. Decidir sobre o destino desses ativos e como eles devem ser acessados ou gerenciados pelos herdeiros é um aspecto essencial desse planejamento.
Algumas plataformas digitais já oferecem soluções parciais, permitindo aos usuários especificar o que gostariam que acontecesse com suas contas após a morte, seja transformando-as em memorias ou excluindo-as permanentemente. Contudo, a abrangência e a eficácia dessas ferramentas variam, e muitas áreas do patrimônio digital permanecem sem diretrizes claras.
A herança digital é um reflexo da evolução constante de nossa sociedade e das tecnologias que moldam nosso dia a dia. À medida que avançamos cada vez mais para um mundo digitalizado, a necessidade de regulamentações claras e práticas de planejamento consciente se torna cada vez mais evidente. Proteger nosso legado digital é não apenas uma questão de preservar nossa memória, mas também de assegurar que nossos entes queridos possam navegar pela nossa partida com clareza e serenidade, tendo acesso ao que valorizamos e desejamos partilhar, mesmo após nosso adeus.
A legislação brasileira precisa urgentemente avançar e disciplinar a matéria. Em boa hora, o anteprojeto da reforma do Código Civil recentemente apresentado pela comissão de juristas escolhida pelo Senado propôs a inclusão de dispositivos relacionados ao direito digital, dentre eles a herança.
A proposta esclarece que apenas os bens digitais economicamente apreciáveis integram a herança, preservando, por outro lado, os direitos da personalidade do falecido. Espera-se que esse anteprojeto seja o embrião de uma lei capaz de adequar a legislação à realidade atual, normatizando o tema e evitando mais conflitos.
Artigo publicado no ConJur.