O estado de calamidade pública instaurado na saúde, decorrente da pandemia do coronavírus (Covid-19), gerou diversas dificuldades para o ajuizamento de ações judiciais, em virtude do impacto no funcionamento do Poder Judiciário e dos obstáculos para que as pessoas conseguissem obter provas e demais informações necessárias para o exercício da garantia de acesso à justiça.
Nesse cenário, em 12/06/2020, entrou em vigor a Lei n° 14.010/2020, fruto do projeto de lei 1.179/2019, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no transcorrer do estado de calamidade instalado no país, com o fim de dar tratamento especial aos contratos firmados entre particulares durante o período de enfrentamento da pandemia.
Entre as disposições dessa lei, foi criada uma causa de impedimento e suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais a partir da sua entrada em vigor em 12/06/2020 até 30/10/2020, aplicando-se também à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 do Código Civil.
A existência da prescrição representa a percepção da influência do tempo sobre todas as coisas, inclusive sobre direitos, ora criando-os, ora extinguindo-os e, em cumprimento à segurança jurídica, não se pode aceitar que as relações interpessoais se perpetuem indefinidamente no tempo, gerando a incerteza humana de ter direitos ameaçados por situações pretéritas, impossibilitando assim, qualquer existência de uma sociedade organizada.
De início, necessário demonstrar que existe diferença entre impedimento, suspensão e interrupção, sendo que, no impedimento, o prazo não inicia seu curso; na suspensão, o prazo inicia-se e fica suspenso, latente, retomando seu curso pelo prazo restante, após cessar a causa de suspensão; já a interrupção, faz com que o prazo transcorrido volte a correr desde o início após o ato que o interrompeu.
O que diferencia as causas de impedimento e de suspensão dos prazos prescricionais é que, no impedimento, a causa ocorre antes do início do prazo, enquanto na suspensão a causa surge após o início do prazo.
A prescrição dos créditos trabalhistas está prevista no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal sendo contada pelo prazo de cinco anos do vencimento da obrigação e dois anos do término do contrato. O caput do art. 11 da CLT contém previsão idêntica à que consta na norma constitucional, ressalvando o §1º desse dispositivo apenas as ações de natureza declaratória, que são consideradas imprescritíveis. O § 2º trata da hipótese de pretensão que envolve pedido de prestações sucessivas decorrente de alteração ou descumprimento do pactuado, quando a prescrição é total, exceto quando o direito à parcela esteja também assegurado por preceito de lei.
Em relação às causas que podem influir na contagem do prazo, após o advento da Lei nº 13.467/2017, foi incluída no artigo 11 da CLT a previsão de interrupção do prazo prescricional, o que se daria “somente” pelo ajuizamento de ação idêntica.
A interpretação literal da norma conduz à conclusão de que à prescrição trabalhista seria aplicável uma única causa interruptiva, mas a interpretação sistemática do artigo 11, § 3º combinada com o artigo 8º, § 1º, ambos da CLT, permite a aplicação das demais causas interruptivas previstas no direito comum ao direito do trabalho.
Essas demais causas interruptivas aplicadas na seara laboral encontram guarida no princípio da interpretação favorável ao trabalhador (in dubio pro operario) como também na necessidade de atribuir maior proteção ao crédito do empregado em face da prescrição extintiva, diante da sua natureza alimentar.
Importante registrar que o artigo 3° da Lei n° 14.010/2020 não conflita com a redação do artigo 11, § 3º da CLT, caso se adote interpretação restritiva, baseada na literalidade da norma, pois a referida lei trata de causa suspensiva da prescrição e o dispositivo celetista trata da interrupção da prescrição.
Desse modo, ainda que se considere que o ajuizamento da ação seja a única causa interruptiva, isso não impede a aplicação de outras causas impeditivas e suspensivas que constam na própria CLT, no Código Civil ou na legislação esparsa, já que não podem ser confundidos os fenômenos da interrupção, suspensão ou impedimento da prescrição, pois os seus efeitos são totalmente distintos.
E voltando à análise do artigo 11 da CLT, vê-se que não há nenhuma disposição a respeito das causas impeditivas e suspensivas, de modo que, ressalvadas as normas específicas previstas na legislação laboral, como é o caso do artigo 440, da CLT, aplicam-se supletivamente os artigos 197 a 199 do Código Civil, em face do que prevê o art. 8º, § 1º da CLT.
A Lei nº 14.010/2020, especificamente no tocante à prescrição, criou uma causa de impedimento ou suspensão da sua contagem, a saber:
Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
- 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional.
- 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
A referida previsão legal nos mostra a evidente necessidade de suspensão do prazo prescricional por várias razões. Segundo a doutrina, são elas:
[…] não são só os impactos no funcionamento regular do Poder Judiciário que justificariam o congelamento da fluência dos prazos prescricionais e decadenciais. A própria adoção de providências para viabilizar o ajuizamento de uma ação judicial nesse período excepcional ficou comprometida, como reunir documentos, obter certidões, contratar profissionais (advogados, peritos etc.). Para tais diligências, há necessidade de deslocamento para repartições públicas e privadas, o que era inviável em virtude do fechamento de estabelecimentos por atos dos governos locais ou, no mínimo, era desaconselhável por força de imperativos de cautela para evitar a contaminação viral. Esse cenário justifica a paralisação dos prazos prescricionais, consoante o já citado princípio do contra non valentem agere non currit praescriptio (GAGLIANO; OLIVEIRA, 2020).
Nesse contexto, a Lei n° 14.010/2020 estabeleceu que o prazo prescricional não terá início (impedimento) ou ficará paralisado (suspensão) no período de 12/06/2020 a 30/10/2020, a fim de resguardar a pretensão dos credores, em face das dificuldades causadas pelas medidas de restrição de circulação de pessoas para a prevenção da contaminação pelo Covid-19.
Ao lado disso, observa-se que o REJT prevê regra subsidiária, de modo que, havendo outra causa impeditiva ou suspensiva específica para o caso, terá prevalência esta em detrimento da norma geral trazida pela nova legislação.
Diante do pouco tempo de vigência do referido regime instituído pela Lei n° 14.010/2020, cuja entrada em vigor se deu em 12/06/2020, a sua aplicação na esfera trabalhista ainda não foi capaz de consolidar a jurisprudência em torno do tema.
Entretanto, em virtude da referida lei não se referir às relações de emprego e nem de tratar de institutos próprios do direito do trabalho, é fora de dúvida que essa questão ensejará controvérsia no âmbito jurídico, pois há quem defenda que esse ramo do direito não compõe o regime jurídico de direito privado, cujo objeto da referida lei faz parte.
O professor Carlos Henrique Bezerra Leite (2020, p. 48-49) entende que há considerável divergência doutrinária sobre o tema, pois existem autores que defendem que o direito do trabalho consistiria, na realidade, em ramo do direito público, de direito misto, de direito unitário ou de direito social.
Em que pese a existência desse entendimento, há diversas razões que levam a crer que a Lei n° 14.010/2020 deve ser aplicada no âmbito trabalhista. Primeiro porque, pelo teor da referida norma jurídica, verifica-se que ela se sobrepõe à algumas das normas específicas, como as que cuidam das locações de imóveis urbanos (art. 9º) e das relações em condomínios edilícios (arts. 12 e 13), sendo indiscutível que o legislador objetivou instituir uma norma de sobredireito, como é o caso da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942).
Partindo desse pressuposto, a aplicabilidade da Lei n° 14.020/20 às relações de emprego é plenamente possível, já que trata, de forma abrangente, de todas as relações jurídicas de direito privado, não tendo aplicação só ao direito civil, como também ao direito do consumidor, ao direito empresarial e ao direito do trabalho.
Some-se a isso o fato de que a carência de previsão no direito do trabalho fez com que esse ramo do direito importasse a utilização das regras sobre prescrição e decadência do Código Civil, até mesmo porque o §1º do artigo 8º da CLT estabelece que o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, o que reforça a conclusão de que esse ramo do ordenamento jurídico integra o regime jurídico de direito privado.
É importante dizer ainda que, mesmo que a doutrina apresente entendimento diverso, as normas do REJT podem ser aplicadas ao contrato de trabalho por meio da analogia, já que o caput do art. 8º da CLT assegura a aplicação de regras semelhantes para casos semelhantes e, nessa linha de raciocínio, a mesma regra de suspensão da prescrição criada pela Lei n° 14.010/20 deve ser garantida ao credor trabalhista, com amparo no §1° do referido dispositivo, que prevê a aplicação subsidiária do direito comum ao ramo trabalhista, evitando que os empregados sejam sancionados com a perda da pretensão, em razão do excepcional momento enfrentado em todo o mundo.
De mais a mais, o modo de aplicação da suspensão de prazos prescricionais em virtude da pandemia e determinada pela Lei n° 14.010/20, ainda é um tema a ser pacificado pelo Judiciário trabalhista. A referida lei determina, em seu texto, que a suspensão vale desde sua entrada em vigor, em 12/06/2020 até o dia 30/10/2020, mas já nos deparamos com o entendimento de esse período deveria se iniciar desde o estabelecimento da pandemia.
O fundamento para isso é que o não reconhecimento do período compreendido entre 20/03/2020 e a data de vigência da lei (12/06/2020) afrontaria o princípio da isonomia, pois situações jurídicas sujeitas aos mesmos obstáculos estariam sendo tratadas de forma distinta.
Outro argumento para que o dia 20/03/2020 seja considerado como o início da suspensão é que o exercício da advocacia não foi considerada como serviço essencial. E a situação foi agravada pelo fato de os profissionais estarem isolados e, por conseguinte, impedidos de exercer o pleno acesso à justiça como garantia fundamental.
E mais. O próprio art. 3° da Lei n°14.020/2020, no seu § 1º, estabelece que “Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional” dá margem para que seja invocado o princípio da unidade e da sistematização com base na diretriz de orientação expressa “fique em casa” e, consequentemente, para que seja considerado o dia 20/03/2020 como marco inicial da suspensão.
Nesse contexto, ciente de que o instituto da prescrição demanda previsão expressa em lei, é certo que o caput do art. 3º do REJT estabelece que os prazos prescricionais se consideram impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor da Lei 14.010/20 até 30 de outubro de 2020, sendo essa a regra de fundo da segurança jurídica.
Marcela do Carmo Vilas Boas
REFERÊNCIAS:
BELUTTO, R. M. L. O impacto da Lei nº 14.010/2020 na prescrição trabalhista. Revista da Escola Judicial do TRT4, v. 2, n. 4, p. 173-193, 3 dez. 2020.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho.16. ed. São Paulo: LTr, 2017.
GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à “lei da pandemia” (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 – RJET): análise detalhada das questões de direito civil e direito processual civil. Jusbrasil, [São Paulo, jun. 2020]. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/859582362/comentarios-a-lei-da pandemialei-14010-2020 (Acesso em: 15.04.2021)
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil: volume único. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.